Denúncias de vizinhos ajudam MPT e auditores a resgatar domésticas escravizadas

Procurador do MPT alerta para conscientização da população para o resgate de trabalhadoras domésticas em condição análoga à escravidão. “Depende de denúncias da sociedade”

A repercussão do drama de trabalhadoras domésticas resgatadas de trabalhos em condições análogas à escravidão tem sido um fator decisivo para que órgãos como o Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério Público Federal (MPF), em conjunto com a Polícia Federal e auditores fiscais do trabalho tenham conseguido agir mais incisivamente na fiscalização e, consequentemente, no resgate dessas trabalhadoras.

Em 2021, 31 trabalhadoras foram resgatadas, número que vem crescendo desde 2017, quando o Ministério do Trabalho e Previdência passou a separar os registros dessas ocorrências. E muito se deve às denúncias feitas por vizinhos, conhecidos e familiares.

Este é o drama vivido por Yolanda Ferreira, de 89 anos, que desde os anos 1970, quando, por falta de condições financeiras, ela e a família foram despejadas de onde moravam foi trabalhar como doméstica e nunca recebeu um centavo.  

Rejeitada pela mãe do marido, Yolanda saiu de casa em busca de trabalho, sem documentos. Foi quando chegou à casa de Nirce Simão, em um bairro nobre de Santos, no litoral paulista. Trabalhou em troca de comida e um local para dormir e, a partir daí teve de submeter às condições da patroa: não tinha salários, nem folgas e era submetida a abusos verbais por parte de uma das filhas da dona da casa. Ela não pode procurar seus familiares, nem tampouco refazer seus documentos, o que era uma promessa de Nirce.

Foi somente após uma denúncia de uma vizinha, Zilmara de Souza Dantas, moradora do apartamento ao lado, que achou estranho o comportamento introspectivo e amedrontado de Yolanda nos corredores do prédio, que ela pode ser resgatada.

“Ela estava trabalhando ainda com uma idade tão avançada. A roupa dela era muito gasta, muito puída, sempre de chinelo, muito humilde e um machucado na perna que não sarava nunca. Dava bom dia para ela, boa noite, mas ela não me respondia. Olhava sempre para baixo. Parecia coagida a não se comunicar. Eu queria mesmo entender qual era o contexto dela naquele apartamento, dentro daquela família”, contou Zilmara ao Fantástico.

O inciso XI do artigo 5º da Constituição garante que “a casa é asilo inviolável do indivíduo e ninguém pode penetrar sem o consentimento do morador, nem mesmo o Estado”, mas há exceções.

Uma delas é quando há determinação judicial. E no caso de fiscalização de trabalho análogo à escravidão, os órgãos de proteção conseguem agir é a partir da denúncia.

Quem explica é o procurador do Ministério Público do Trabalho, Italvar Medina, que é vice coordenador da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete).

“Como acontece dentro de quatro paredes, os casos ficam invisíveis aos órgãos de fiscalização de um modo geral. E como fica difícil a fiscalização de rotina já que há a proteção constitucional torna-se necessária a denúncia. É a partir disso que se pode ter uma autorização judicial para fiscalizar e resgatar as trabalhadoras”, diz o procurador.

E é justamente a repercussão desses casos na imprensa que levam a uma maior conscientização da sociedade sobre essa realidade. É desta forma que cada vez mais pessoas passam a ficar alertas sobre possíveis casos e denunciam.

Realidade vergonhosa

Só a crueldade de pessoas que ainda guardam no DNA a cultura escravocrata do Brasil-colônia pode explicar a decisão de famílias com algum poder aquisitvo de ainda manterem mulheres pobres, a maioria negras, como escravas dentro de suas casas, afirma a presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Luiza Batista.

“Os descendentes dos senhores de escravos daquela época ainda guardam isso no sangue. Acham que nós trabalhadoras domésticas ainda somos escravas”, ela diz.

Ao considerar que, para a elite, os tempos ainda não mudaram e que modernidade e direitos existem apenas para eles, Luiza cita ainda uma outra característica – típica das relações entre empregadores e trabalhadoras domésticas – que é o discurso de ‘fazer parte família’, como faz a maioria dos que são pegos em flagrante delito.

“Dizer que a trabalhadora é como se fosse da família nada mais é do que manipular o lado emocional para explorar e escravizar. Temos nossa própria família. O que a gente precisa é de direitos, de respeito e de valorização”, ressalta a sindicalista.

Este ano, no Rio de Janeiro, uma mulher negra de 84 anos foi resgatada pela Auditoria Fiscal do Trabalho de condições análogas às de escravo após 72 anos trabalhando como empregada doméstica para três gerações de uma mesma família no Rio de Janeiro,

Era como um membro da família”, disseram os patrões que foram desmentidos por vizinhos e por uma irmã e uma sobrinha da trabalhadora ouvidos pelos fiscais. Elas confirmaram a relação de emprego e também que os patrões controlavam visitas e telefonemas, dificultando o contato da trabalhadora com o mundo externo.

Em junho do ano passado, outras duas trabalhadoras – membros da família - foram resgatadas de situações de trabalho análogas à escravidão, uma em São José dos Campos (SP) e outra Anápolís (GO). Como todas as resgatadas, elas eram privadas de convívio social, não recebiam salários, não tinham folgas ou férias.

Outro fator agravante para que casos assim ainda aconteçam no Brasil é o que Luiza considera ser uma punição branda. “Até agora nenhuma dessas pessoas foi presa, então elas não sabem o que é punição”, diz Luiza.

As multas acabam não doendo no bolso. Pagou as verbas rescisórias e pronto, está tudo certo. O tempo de vida usurpado das trabalhadoras, os melhores anos delas, que foram tirados de maneira cruel, não geram nenhuma pena maior. Então para elas não faz diferença, infelizmente- Luiza Batista


Para o procurador do MPT, Italvar Medina, o conceito é o mesmo de Luiza. Ele faz um resgate da história para afirmar que a ideia de escravidão ainda é presente na sociedade contemporânea.

“É preciso ter em mente que a exploração do trabalho humano, a escravidão, nunca deixou de existir. Ainda na abolição, um dia após a libertação dos escravizados, os trabalhadores continuaram em condições degradantes. Não houve preocupação em formalização. Até mesmo os imigrantes italianos, à época recém-chegados ao Brasil, foram submetidos a essas condições, como a servidão por dívidas”, diz Medina.

E, para ele, os fatores que perpetuam vão além das questões culturais. “A vulnerabilidade social, a ausência de acesso de grande parte da população a serviços básicos como educação, alimentação, ao mercado de trabalho, bem como a falta de qualificação são fatores para a existência do trabalho análogo à escravidão”, ele explica.

Outro fator é a exploração econômica que segundo Medina, também contribui para esta realidade. Grandes empresas e grandes corporações, de diversos setores como têxtil, mineração e lavouras, não mantêm um controle da cadeia produtiva. “As empresas têm lucros, mas adquirem suas matérias-primas de produtores, de terceirizados que, na ponta, exploram o trabalho degradante”, pontua o procurador.

Trabalho doméstico

O Artigo 149 do Código Penal define trabalho análogo ao escravo aqueles em que seres humanos estão submetidos a serviços forçados, jornadas intensas que podem causar danos físicos, condições degradantes e restrição de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto.

No trabalho doméstico, pode acontecer de diferentes formas: quando a trabalhadora é considerada “da família” e não recebe salário, quando ela não tem liberdade para sair de casa, quando está sujeita condições degradantes que ferem seus direitos fundamentais – como receber acomodação sem condições de higiene e conforto – ou quando é submetida, por exemplo, a jornadas de trabalho exaustivas, precisando estar disponível para empregadores/empregadoras a qualquer hora e sem poder dizer “não”.

(fonte: OIT/Brasil)

Atuação da OIT

A Fenatrad, em conjunto com a ONU Mulheres, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro (MPT-RJ) e outras instituições iniciaram uma campanha em defesa dos direitos das trabalhadoras domésticas, com foco no combate ao trabalho doméstico análogo à escravidão.

Com a hashtag #TrabalhoEscravoDomesticoNuncaMais, o objetivo é conscientizar a população em geral, trabalhadoras e pessoas que utilizam serviços de trabalhadoras domésticas sobre as características do trabalho análogo à escravidão de forma a combatê-lo.

As atrizes Camila Pitanga, Embaixadora da ONU Mulheres no Brasil, Kenia Maria, Defensora do Direito das Mulheres Negras da ONU Mulheres, Paolla Oliveira e Elisa Lucinda (especialmente convidadas por ONU Mulheres e Ministério Público do Trabalho) participam da iniciativa por meio de depoimentos em vídeo que visam alertar a população em geral sobre essa forma criminosa de relação de trabalho

A Organização Internacional do Trabalho tem a Convenção 189, ratificada pelo Brasil há 11 anos, mas não colocada em prática ainda em sua totalidade, que é pauta de luta da Fenatrad.

Números do trabalho análogo à escravidão

O combate a esta forma de exploração foi instituído em 1995 quando foi criado o grupo de fiscalização móvel, integrado por auditores fiscais do trabalho, MPT, MPF, Polícia Federal e Polícia Federal Rodoviária para fiscalizar, autuar e responsabilizar os infratores.

Ao MPT, explica Medina, cabe também a função de responsabilizar os empregadores, por meio de um Termo de Ajuste de Conduta ou no caso da recusa do infrator, por meio de ação pública.

As ações nem sempre têm origem em denúncias. Há muitos casos em que o trabalho de inteligência dos órgãos consegue detectar a existência de trabalho em condições análogas à escravidão. Há também situações em que investigações sobre outros atos ilícitos acabam se desdobrando na descoberta do trabalho degradante.

Em quase 30 aos de atuação, o grupo móvel de fiscalização já resgatou cerca de 58 mil trabalhadores tanto em setores rurais como urbanos. Somente nos últimos dez anos, foram cerca de 16,5 mil, com destaque para os anos de 2012 e 2013, com mais de 5,5 mil casos. No último ano, foram apenas 500, fato que se deve à falta de recursos por parte do governo federal.

Fonte: CUT Brasil (André Accarini |  Marize Muniz)