Análise comparativa do desempenho de companhias de saneamento privadas e estaduais em cidades brasileiras

Autores: Artur Valadão e Priscila Neves-Silva [1]

A universalização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário ainda está longe de ser uma realidade no Brasil. Dados recentes do Joint Monitoring Programme mostram que o Brasil tem 86% de domicílios com acesso à água segura, 13,5% com acesso básico e 0,5% ainda possuem acesso pouco seguro. Para o esgotamento sanitário, apenas 48,7% têm acesso seguro, 41% acesso básico, 10% pouco seguro e 0,3% praticam defecação a céu aberto (WHO/UNICEF, 2021). Esses valores mostram a importância da expansão desses serviços o quanto antes, uma vez que a falta destes é responsável direta e indiretamente por milhares de mortes e internações todos os anos. Tendo em vista esse panorama, e com o argumento de se alcançar a universalização do acesso mais rapidamente, foi sancionado em julho de 2020 o novo marco do saneamento (lei 14.026/2020), que incentiva a entrada de capital privado para o setor (BRASIL, 2020).

Contudo, a privatização desses serviços traz consigo outras implicações que podem comprometer a plena realização dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário (DHAES). Segundo relatório do ex-relator das nações unidas para os DHAES, a privatização dos serviços de saneamento pode gerar riscos ao DHAES devido a três fatores: a busca pela maximização de lucros das empresas, o desequilíbrio de poder entre pequenos municípios e grandes empresas prestadoras de serviço, e ao monopólio natural, característica dos serviços de saneamento (HELLER,2020).

Com base neste panorama, e na possibilidade de aumentar o número de prestadores privados atuando no país, é importante compreender qual o desempenho das empresas privadas que já atuam no país, com o intuito de verificar quais as principais consequências desse processo. Para tanto, foi elaborado um projeto de pesquisa que tem como objetivo entender se há diferença no desempenho de prestadores de serviço de água e esgoto, públicos e privados, através da comparação de indicadores entre prestadores de municípios onde já foi implementada a privatização e outros que ainda permanecem sob gestão pública.

Dessa forma, tendo como base os dados do SNIS (Sistema Nacional de Informação sobre o Saneamento), foi selecionada uma prestadora de serviço pública com desempenho mediano, ou seja, uma prestadora que se manteve mais próxima para a média brasileira de alguns indicadores como receita direta gerada por habitante, funcionários próprios, número de reclamações por habitante, porcentagem de esgoto tratado e porcentagem da população atendida com Água. Portanto, entre as empresas que se mantiveram mais fiéis às médias dos indicadores, foi escolhida a SANEASUL, que atua no Mato Grosso do Sul.

A partir dessa seleção, escolheram-se os municípios que seriam avaliados. Foram selecionados 3 municípios tendo como variáveis de seleção o número de habitantes e o IDH. Os municípios foram separados em mais de 100 mil habitantes, entre 50 e 100 mil e abaixo de 100 mil. Para as duas primeiras categorias foram selecionados municípios com IDH alto e para a terceira com IDH médio. A partir dessa seleção foram identificados os municípios onde atuam empresas privadas. O mesmo critério de seleção foi utilizado e manteve-se a mesma região do país, com o intuito de preservar características sociais e culturais similares. Dessa forma, foram selecionados municípios da região Centro Oeste e as empresas privadas avaliadas foram: Águas de Sinop, Águas de Primavera Ltda e Águas de Peixoto S/A.

O desempenho das empresas selecionadas foi avaliado através de indicadores previamente identificados e retirados do bando de dados do SNIS (MDR, 2020).  A seleção dos indicadores teve como base a análise de maximização de lucro e a relação com os elementos do conteúdo normativo do DHAES, acessibilidade financeira, disponibilidade e qualidade/segurança.

Com base nos dados coletados para os últimos 5 anos dos referidos indicadores, foi feita análise estatística para entender como a distribuição dos valores encontrados se dá e em quais delas, de fato, podemos considerar que houve uma diferença significativa entre prestadoras privadas e públicas.

O resultado da análise aponta que, com relação à maximização dos lucros, no que se refere a arrecadação total e investimentos realizados, não foram encontradas diferenças significativas entre as empresas pesquisadas. Contudo, a média do indicador de despesas totais com os serviços foi significativamente maior para as prestadoras públicas (R$27.509.617) quando comparado com as privadas (R$17.891.769).

Com relação à acessibilidade financeira, a média da tarifa média praticada pelas empresas privadas é de 3,19 reais por metro cúbico de água e para a pública de 4,64, sendo, portanto, maior no serviço público. Apesar da diferença entre as tarifas médias praticadas, é importante considerar que a média nacional é de R$5,38 por metro cúbico, logo ambas empresas têm uma média tarifária menor quando comparada com a média do país.

No quesito disponibilidade, as paralisações dos sistemas de distribuição de água e a duração dessas paralisações foram maiores nos serviços privados, 345 horas somadas de paralisação nos serviços privados, contra 195 horas somadas para os serviços públicos, no ano de 2020. E por fim, quando analisamos a qualidade/segurança do serviço ofertado, os indicadores de incidência de cloro residual e turbidez fora do padrão também foram maiores nos serviços privados, com 3,87% e 0,47% de amostras fora do padrão para cloro residual e turbidez, respectivamente; e 0,05 e 0,20% das amostras fora do padrão para cloro residual e turbidez, para as empresas públicas.

Portanto, após analisar os resultados obtidos, pode-se perceber uma tendência das empresas privadas analisadas a apresentar um pior desempenho nos quesitos disponibilidade e qualidade do serviço, apesar de ter uma tarifa média praticada menor. Por outro lado, a empresa estadual pública, tendo uma tarifa média praticada maior, apresenta melhores resultados nos quesitos disponibilidade e qualidade/segurança. Cabe ressaltar que a SANEASUL trabalha sob a lógica do subsídio cruzado e que em 2022 a Águas de Sinop aumentou a tarifa em 31,12% (GCNoticias, 2022).

Portanto, para o caso analisado, temos indícios de que os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário podem estar em risco quando se trata da privatização do setor do saneamento, com efeitos notáveis para a disponibilidade e a qualidade/segurança do serviço prestado.

Referências:
– BRASIL, Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020. Atualiza o marco legal do saneamento básico e altera a Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14026.htm
– Águas de Sinop reverte decisão e consegue aumento de 31% na tarifa.2022. https://www.gcnoticias.com.br/geral/aguas-de-sinop-reverte-decisao-e-consegue-aumento-de-31-na-tarifa/132579952
– HELLER, Léo. Direitos humanos e a privatização dos serviços de água e esgotamento sanitário: Relatório do Relator Especial sobre os direitos humanos à água potável e ao esgotamento sanitário. 21 de julho de 2020. Assembleia Geral das Nações Unidas.
–  MDR. Ministério do Desenvolvimento Regional. Sistema Nacional de Informação sobre o Saneamento. SNIS- Serie Histórica. 2020. Brasil.
–  WHO/UNICEF. Progress on household drinking water, sanitation and hygiene 2000-2020:    five years into the SDGs. 2021. Geneva: World Health Organization (WHO) and the United Nations Children’s Fund (UNICEF)

[1] Autores:
Artur Valadão – Estudante de Engenharia Civil na UFMG, bolsista de iniciação científica no Instituto René Rachou e integrante do grupo Privaqua.
– Priscila Neves-Silva – Doutora e Mestre em Saúde Coletiva pelo Centro de pesquisas René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz, atualmente faz Pós-Doutorado junto ao grupo de pesquisa de Direitos Humanos e Políticas Públicas em Saúde e Saneamento da mesma instituição. É mestre em Epidemiologia e Saúde Pública pela Universidad Rey Juan Carlos (Espanha) e graduada em Fisioterapia pela PUC-MG.

Privaqua é um projeto de pesquisa que busca entender o impacto da privatização dos serviços de água e saneamento nos direitos humanos. Regularmente, o site do ONDAS publica notas do Privaqua de forma a dar transparência ao projeto e compartilhar alguns de seus achados preliminares.