Quando o STF não foi Supremo

Promulgada em 15 de julho de 2020, a Lei 14.026, que promoveu alterações profundas no marco regulatório do saneamento básico, trouxe junto com ela diversas controvérsias. Nesse sentido, foram ajuizadas quatro ações de inconstitucionalidade – ADIs, cuja finalidade era buscar a declaração de que a lei, ou partes dela, contrariava a Constituição Federal. O julgamento das ADIs (para a síntese dos principais argumentos trazidos por cada ação, consulte o link: (https://ondasbrasil.org/por-que-a-lei-no-14-026-2020-e-considerada-inconstitucional/) teve início no dia 24 de novembro de 2021, perdurando entre os dias 25 de novembro, 1 e 2 de dezembro.

É importante esclarecer a estrutura do julgamento em si. Quando se têm ações no Supremo Tribunal Federal, é sorteado um relator – nesse caso, o Ministro Luiz Fux – que estuda o caso e apresenta o seu voto para o plenário, podendo decidir pessoalmente quando se trata de pedidos de liminares. No caso das ADIs, já analisadas em outro artigo aqui publicado, os pedidos liminares foram negados, sob a alegação de ausência de seus requisitos constitutivos. Daí, o relator finalizou seu voto e pautou o julgamento em plenário, que contava com 10 ministros, em vista da vacância decorrente da aposentadoria do Ministro Marco Aurélio Mello.

O ritual de julgamento incluiu o pronunciamento dos advogados das entidades que interpuseram as ações de inconstitucionalidade e do Procurador Geral da União – que defendeu a improcedência de todas as ADIs ajuizadas. Em seguida, o relator, Ministro Luiz Fux, profere seu voto e seguem os votos dos demais ministros do STF.

Após realizar uma breve explanação preliminar do tema, o Ministro Luiz Fux deu início ao seu voto. Começou verificando que as quatro ADIs abordam diferentes aspectos da Lei 14.026, a qual ele caracterizou como uma refundação do ambiente jurídico (legal framework) do serviço público de saneamento básico. Salientou ainda que as ADIs 6536 e 6583 pleitearam a inconstitucionalidade na íntegra da legislação, sem delimitação específica da parte do ato normativo impugnado. Contudo, suscitando o princípio da primazia da solução da questão de fundo, as incluiu no julgamento conjunto, segundo ele propiciando uma análise transversal das dimensões federativa e administrativa da questão.

Os argumentos das ADIs já nos são bastante familiares, uma vez que já foram dissecados em outra análise aqui publicada. Dessa forma, é importante destacar o que fora objeto dos votos apresentados nos dias de julgamento dessas ações. Ao fazer a leitura geral dos votos e pronunciamentos, percebem-se alguns argumentos centrais integrantes dos votos favoráveis ao não acatamento das ações:

o sistema de saneamento nacional é deficitário e, portanto, necessita de uma mudança em virtude de uma grave crise de acesso e de serviços de qualidade muito baixa;
o Poder Público não teria condições orçamentárias de aportar recursos para universalizar o saneamento, ou seja, dar acesso a todos aos serviços, sendo a iniciativa privada a única alternativa possível;
tratou-se de uma escolha política do parlamento; a autodeterminação, ou autonomia, municipal é inócua diante da ausência de recursos para resolver o problema; a Constituição já estabelece o modelo de concessão pública por meio de licitação; para a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum, podem ser criadas outras formas de integração federativa, para além das previstas no art. 25, §3 da Constituição, sendo que sua interpretação não deve ser restritiva; a privatização é autorizada pela Constituição; não há paridade de “armas” entre setor público e privado no saneamento, visto que o primeiro teria privilégios que o segundo não tem, sendo o novo marco uma solução razoável para abrir mais espaço para o setor privado igualando as oportunidades; o saneamento não se trata de uma questão ideológica; o contrato de programa teria sido ineficiente para resolver a grave crise de acesso ao saneamento básico; a fragmentação regulatória prejudica o ambiente de negócios relacionados ao saneamento; a obrigatoriedade de os municípios seguirem as novas regras possibilita que a União não repasse recursos orçamentários facultativos.
Os três ministros que votaram parcialmente contra a constitucionalidade da Lei basearam-se nos argumentos seguintes:
a extinção do contrato de programa viola o art. 241 da Constituição;
a privatização por si só não garante a prestação de serviços;
restou aos municípios apenas a possibilidade de acatar as normas federais;
a exclusão dos municípios não passa no teste de razoabilidade, reduzindo o poder decisório dos mesmos;
não está na Constituição a imposição da iniciativa privada como única forma de fornecimento dos serviços;
Inconstitucionais os Arts. 7 da Lei 14.026 quanto à alteração do art 8, parágrafo 1, art. 9, inc. I e II, e art. 10, caput da lei 11.445/2007, e também inconstitucional o art. 9 da lei 14.026, no que altera o art. 13, parágrafo 8 da lei 11.107, e art. 13 da lei 14.026;
violação aos art. 1, 18, 30, I, II e V, da CF, ao se estabelecer a exigência compulsória de observância das regras da ANA e a imposição de migração para o regime de concessão para que municípios estejam aptos a receber recursos federais;
haveria uma espécie de “chantagem institucional”, ao se exigir dos municípios o seguimento de regras da União, não os permitindo exercer plenamente sua autonomia (voto do Ministro Fachin).
O voto do relator Ministro Fux restou como prevalente, sendo acompanhado pelos ministros Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia e Dias Toffoli.

Em sua análise, Fux concluiu que a lei nº 14.026 tem o intuito de alcançar a universalização dos serviços de saneamento básico no território do país. Passou então a refutar os argumentos de que as questões de saneamento básico são apenas de interesse local e de competência dos municípios.

O ministro considerou que o disciplinamento da matéria é mais fluido que se compatibiliza com os traços multissetoriais do saneamento básico, de acordo com a competência compartilhada prevista no art. 23, IX da Constituição Federal, e também com o art. 200, IV que trata do Sistema Único de Saúde – SUS. Trouxe que as opções políticas resguardadas por esses artigos dizem respeito às políticas de saneamento, podendo a participação dos Estado ou da União condicionar o cronograma de projetos para determinar a ordem dessas políticas correlatas. Porém, aduziu que tais participações não retiram a força da interpretação do STF para atribuir a titularidade para a execução dos serviços aos municípios e ao Distrito Federal, invocando o precedente da paradigmática ADI 1842.

Passou-se então ao ponto mais controvertido do julgamento, que trata da transferência de execução dos serviços de um ente federativo para outro através dos Contratos de Programa. Fux assentou que a alteração legislativa não fere a autonomia dos entes federativos e que a norma trouxe margem para a adaptação dos contratos de programa vigentes. Quanto a esse ponto, o ministro concluiu que a adesão da entidade federativa ao arranjo de consórcio/convênio é uma faculdade. O aceite do município concretiza a máxima expressão do seu poder-dever de execução do serviço público, porquanto define a moldura de suas características e responsabilidades com a organização e prestação daquele serviço definindo como e por quais meios, conforme o art. 30, V.

Em oposição, o ministro Edson Fachin discordou, ao entender que há violação ao pacto federativo com a nova lei, pois os municípios ficarão restritos a assinarem consórcios de interesse. O ministro também colocou que os contratos de programa vigentes não poderiam ser alterados com as novas metas instituídas, uma vez que as regras foram pactuadas antes da modificação legal.

Fachin votou a favor da possibilidade de acesso aos recursos federais pela não observância da regulação da ANA, em razão da ofensa à autonomia dos entes federados, opondo-se ao voto ministro Fux, que entendeu que a regulação do serviço pela Agência Nacional de Águas (ANA), não feriria a autonomia dos municípios. Os ministros Rosa Weber e Ricardo Lewandowski acompanharam o voto de Fachin.

Apresentados os argumentos centrais e gerais acerca das ADIs, o que se viu na votação da Suprema Corte brasileira foi uma tendência muito forte em responsabilizar o modelo anterior como o causador da falta de acesso ao saneamento, alegando a prevalência histórica de mecanismos inadequados. Diante disso, tornou-se majoritária, na análise dos julgadores, a tese de que a prestação pública dos serviços falhou e de que também a regulação dos serviços tem falhado. Para se chegar a essa conclusão, não se fez uma análise aprofundada em estudos jurídicos, sendo muito mais algo seletivo que apontou para uma tendência muito clara em declarar a ineficiência estatal, principalmente de municípios, na provisão de serviços básicos.

Então, o julgamento apontou que o legislativo fez uma escolha que versou em torno de uma mudança do sistema com base na ineficiência de serviços providos apenas pelo Estado. Estritamente, não se proibiu que o Estado preste o serviço diretamente por meio das companhias estaduais de saneamento básicos (CESBs), porém na prática extinguiu a possibilidade de contratação direta pelos municípios de serviços das empresas estatais. Essas últimos precisam comprovar capacidade econômico-financeira e o estabelecimento de metas para universalização do saneamento. Também não se entendeu por obrigatória a adesão dos Municípios aos blocos regionalizados, contudo se legitimou o não repasse de recursos voluntários caso não o fizessem.

O STF, como já era esperado, não adentrou no campo da eficiência acerca do modelo implementado pela nova lei, cuidou apenas de apontar os problemas do atual modelo sem verificar que em outros países a situação não mudou, não melhorou e os ganhos esperados não vieram. Sendo certo inclusive que, internacionalmente, podemos notar um crescente movimento de remunicipalização desses serviços, tradicionalmente exercidos por prestadores privados.

Ao que parece, o caminho adotado pelo STF foi o da austeridade fiscal, aduzindo que o Estado não tem capacidade econômico-financeira para engendrar mudanças mais substanciais e que se faz necessário fomentar a concorrência para o mercado. Foi então colocado que as disparidades de cobertura pelos serviços, decorrentes de fatores socioeconômicos, são prejudiciais ao acesso universal. Salientou-se ainda que os atributos econômicos da execução do saneamento revelam um contexto de fácil convergência dos agentes envolvidos ao monopólio natural. Entretanto, quando o tribunal legitima a exigência da obrigatoriedade de licitação, teremos, por outro lado, um verdadeiro monopólio privado, uma vez que os contratos após homologados têm uma duração de 30 a 35 anos, período em que irá se estabelecer uma prestação privada sem concorrência alguma.

O compromisso de universalização do serviço não vem com a garantia de bons resultados, a exemplo do que aconteceu na cidade de Manaus e no estado de Tocantins. Em outros fóruns é possível perceber que os lucros e dividendos das empresas têm aumentado, enquanto os investimentos têm diminuído, seguindo a lógica do mercado privado. Portanto, a ideia das empresas privadas é obter um lucro cada vez maior, ficando os investimentos em segundo plano. Sem eles, não será possível atender a tão almejada universalização.

Porém, se defendermos aqui a necessidade de o tribunal avaliar mais profundamente a questão do saneamento, os juristas de plantão vão, certamente, afirmar que não seria o caso, pois o que estava em jogo era avaliar formalmente a constitucionalidade da lei. Contudo, podemos perceber algumas manobras jurídicas que subsidiaram juízos de opinião, restringindo a interpretação de alguns dispositivos constitucionais somente para o setor de saneamento. Não se observa uma relação entre melhor serviço e serviço privatizado, ao contrário do que foi adotado como premissa no julgamento. Do lado oposto, o Supremo distancia-se do fato social em si, uma vez que, por exemplo, coloca a agência reguladora como detentora da capacidade real de fiscalizar e resolver os problemas que aparecerem.

Pelo ministro Fux, foi colocado que “especialistas entendem que esse é um momento histórico para o Brasil, diante dessa ineficiência que nós assistimos em relação ao saneamento no país”. É algo intolerável que o brasileiro não tenha água potável e esgoto tratado”, afirmou. Mas que especialistas? Todavia, a entrega do setor ao capital privado não nos oferece nenhuma garantia de que a tão sonhada universalização será de fato entregue dentro da meta estabelecida de 2033.

Apesar de se enfatizar a necessidade de um debate não ideológico, o que nos parece é que o julgamento do STF não seguiu esse script, uma vez que a autonomia municipal ficou maculada com o atual marco, adentrando-se na defesa de que o sistema anterior foi falho sem detalhar os porquês e as causas, apontando-se como único caminho o fortalecimento do setor privado do saneamento em detrimento do setor público, e que aqui não se deseja dizer que o segundo não mereça reparos, como em qualquer setor. Na verdade, o debate, nas entrelinhas, foi ideológico no sentido de que havia preferências sendo defendidas e … isso não foi nada supremo.

[1] Autores:
– José Irivaldo A. O. Silva – Professor Adjunto da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG – Unidade Acadêmica de Gestão Pública – UAGESP; Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas – UFPB; Professor do Mestrado Profissional em Gestão e Regulação dos Recursos Hídricos – UFCG; Professor no Mestrado Profissional em Administração Pública – UFCG; Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2, CNPq
– Laiana Carla Ferreira – Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, UFRJ, membro do Privaqua/FioCruz.

Fonte: ondasbrasil.org