DUAS BOMBAS NO BOLSO DO CONSUMIDOR, PRIVATIZAÇÃO DA ELETROBRAS E CONTA COVID

Neste momento singular da história, à exceção do Brasil, nenhum outro país popôs o aumento de preços e tarifas no setor elétrico ou apostou na privatização para estimular os investimentos, utilizando-se de argumentos falaciosos.
Numa crise econômica que se anuncia como a mais severa desde a 2ª Guerra Mundial, as medidas mais comuns têm sido reestatizações e concessões de subsídios, por vezes acompanhados de congelamento de preços e tarifas. Na contramão disso e do bom senso, o governo, sob a liderança de Paulo Guedes, põe em marcha duas medidas que irão provocar aumento nas contas de energia elétrica: a privatização da Eletrobras e a Conta Covid, um socorro às distribuidoras via Decreto nº 10.350. O governo faz cortesia com o chapéu e o sacrifício alheios.
Pesquisas têm mostrado que a população se opõe à privatização da Eletrobras, e são muitas as razões para tanto. Do lado econômico, estimativas conservadoras da Aneel preveem que a privatização causaria um aumento de 20% no preço, só no primeiro ano, uma vez que a Eletrobras vende a energia mais barata do país pelo regime de cotas, que seria extinto.
Isso sem falar dos aumentos anuais normais das tarifas, que pelos contratos de concessão são automáticos; e que estamos vivendo atualmente um cenário de sobra de energia. Em um ambiente de falta de energia, os aumentos tarifários são incalculáveis. Cabe lembrar que basta uma declaração de alguma autoridade pública de que vai faltar energia em um horizonte de alguns poucos anos à frente e o preço da energia sobe exponencialmente.
Na tentativa de ludibriar o povo, o governo planeja diluir esse aumento no tempo, da mesma forma que está fazendo com a Conta Covid. Isso significa que, caso a privatização ocorra, seremos expostos a mais um tarifaço no momento seguinte à venda, ou a anos de elevados aumentos dos preços. Essa é uma das bombas que o governo quer colocar no bolso do consumidor.
A justificativa de que a privatização ajudará no pagamento da dívida pública não encontra respaldo na realidade. A Eletrobras é geradora líquida de recursos para União com o pagamento dos dividendos. A empresa acaba de propor o pagamento de R$2,5 bilhões, dos quais mais de R$1 bilhão deve ir para União. A venda também não considera a perda de um fluxo de recebimentos futuros. Fora que o valor arrecadado com a venda foi estimado em R$16 bilhões, menos de 0,4% da Dívida Pública, que já passa de R$4,2 trilhões.
Cabe lembrar que as privatizações feitas no governo FHC nas décadas de 1990 e 2000 utilizaram-se modelos de venda muito melhores que o atualmente proposto e propuseram-se a pagar dívidas. As dívidas não foram pagas, o pouco dinheiro que entrou evaporou e a dívida aumentou exponencialmente. Agora repete-se a mesma falácia.
O momento para a venda também não é oportuno. De fevereiro a junho de 2020, o valor de mercado da empresa derreteu 30%, de R$65 bilhões para cerca de R$45 bilhões. Nesse momento de grande perda de valor, a venda seria um atentado ainda maior contra o patrimônio público.
Experiências de diversos governos na privatização dos setores de infraestrutura se mostraram fracassadas.
Muitos que na década de 90 venderam suas estatais estão hoje revertendo essas ações, principalmente após a crise de 2008. Estudo publicado pelo Transnational Institute mostra que foram mais de 800 reestatizações de empresas de infraestrutura nos últimos anos, especialmente em países europeus, de estruturas democráticas mais participativas. Só no setor de energia foram mais de 311, em países como Alemanha, Estados Unidos, Reino Unido e Japão. As reestatizações foram provocadas pelo não cumprimento dos contratos, principalmente má qualidade dos serviços, elevados aumentos das tarifas e investimentos abaixo do nível necessário.
Ao contrário do que muitos parecem pensar, o setor elétrico no Brasil é majoritariamente privado. E desde a abertura do setor elétrico, com as privatizações do governo FHC, o setor vem enfrentando os mesmos problemas e os governos insistem em fórmulas que só agravam a situação! Some-se a isso que desde 1995 os consumidores vêm experimentando aumentos de preço acima da inflação. A adoção do modelo mercantil é a principal responsável pelo 3º lugar no ranking de energia elétrica mais cara do mundo, na comparação pelo método da paridade do poder de compra da Agência Internacional de Energia. Seus defensores argumentavam que a competição atrairia investimentos privados que, por sua vez, promoveriam a redução dos preços, o que nunca ocorreu.
Para piorar, o sistema de comercialização divide os consumidores em dois mercados, um regulado e um “livre”, e agrava as desigualdades, ao privilegiar bancos e comercializadores, que lucram na intermediação, e grandes consumidores industriais, que pagam menos pela energia. Os consumidores residenciais, cativos, são expostos aos preços do mercado regulado e sustentam os investimentos. Enquanto os consumidores cativos sustentam a expansão do setor, intermediários e grandes indústrias capturam a maior parte dos ganhos de produtividade e as baixas de preço nos momentos de excesso de oferta.
No Brasil, sempre que relegamos ao setor privado os investimentos no setor elétrico, tivemos sérios problemas, vide o apagão de 2001, uma séria consequência de se ter transferido ao setor privado boa parte do parque gerador, transmissor e distribuidor de energia. O setor privado não investe segundo um planejamento de longo prazo. Ele aguarda e colabora na criação de um ambiente de falta de energia. O setor privado só investe de a demanda chegar primeiro. Então obrigam o governo e os consumidores a aceitarem suas regras e seus preços escorchantes.
O setor elétrico é intensivo em capital e seus investimentos costumam ser de média ou longa maturação. Isso requer um prazo razoavelmente longo entre a realização do investimento e a obtenção de algum retorno, o que vai de encontro aos objetivos do investidor privado que espera retorno alto e em curto prazo. No atual momento, com as crises econômica e climática, que geram grandes incertezas, apostar no investimento privado para garantir o nível de investimento para a segurança de abastecimento seria promover a repetição, agora ainda mais irresponsável e absurda, dos erros dos anos 90.
No Brasil, o setor privado só investiu em grandes projetos quando teve a Eletrobras como a parceira que arcava com os principais riscos. O quadro de ameaça à segurança de abastecimento é agravado pelas mudanças no BNDES que, no passado, teve participação decisiva na expansão do setor.
A Eletrobras pode e deve atuar como sustentáculo dos investimentos privados, pois além de conhecimento técnico, é lucrativa e possui as condições financeiras necessárias. Contudo, isso só ocorrerá se ela for estatal. Como empresa privada, seguirá o comportamento de seus pares, que, se já não investiam antes, nesse momento de incertezas se retrairão ainda mais.
Dada a falta de debate e de projeto de desenvolvimento para o país e para o setor elétrico, perde-se de vista que a Eletrobras pode e deve ter papel fundamental nessa necessária transição energética em direção à descarbonização, que é urgente. Nesse processo, há necessidade de investimento e de muita coordenação, que podem fluir mais facilmente quando se tem uma empresa como a Eletrobras, com os principais elementos estratégicos de flexibilidade – 50% dos reservatórios de água e 47% das linhas transmissão do país.
Como já o fez, e é sua vocação, a Eletrobras pode articular e coordenar os recursos do Sistema Elétrico Brasileiro de modo a orientar as ações para atingir a meta de descarbonização. A experiência na gestão do Proinfa e sua atuação direta, via investimentos em usinas renováveis, mostram que a Eletrobras teve papel fundamental no crescimento das fontes de energias alternativas na matriz elétrica brasileira. O Brasil possui hoje um parque gerador de energias alternativas maior que uma Itaipu, graças a atuação decisiva da Eletrobras.
Essa tarefa de coordenação é facilitada quando se tem à frente uma estatal lastreada pela União, que tem mais facilidade de acesso aos recursos a necessária adaptação do setor à expansão da participação das renováveis na matriz energética.
A segunda bomba, de efeito retardado, o governo colocou no bolso do consumidor com o Decreto nº 10.350, conhecido como Conta Covid. Trata-se de um empréstimo bancário para socorrer distribuidoras de energia, que deverá ser pago pelos consumidores, em até 60 meses, nas contas de luz. A conta hoje está em R$14,8 bilhões à taxa de 3,79% + CDI ao ano e pode aumentar no futuro. Ao contrário do que afirma o governo, a Conta Covid não reduz a tarifa, só adia o aumento ao qual acrescenta juros e remuneração às instituições intermediárias. Adivinhe no bolso de quem vai cair essa conta? Sim, no bolso do pequeno e médio consumidor.
Por outro lado, esse tipo de operação prejudica o setor de crédito do país, já que deixa os bancos em situação confortável. Por que vão correr riscos dando crédito ao consumidor de maneira geral e às empresas, se têm no governo um aliado para criar esses tipos de operação? Quantos bens e serviços e quantas micro, pequenas e médias empresas seria possível financiar com esses R$ 14,8 bilhões? Quantos empregos poderiam ser gerados? O governo foge da responsabilidade, joga a conta para a população brasileira e ainda quer posar de bom moço!
À primeira vista, parece que vivemos um grande paradoxo, uma afronta ao que seriam as leis básicas da economia. A demanda por energia elétrica sofreu uma grande queda, de 6%, enquanto a oferta apresentou um pequeno aumento. Pela lei da oferta e demanda, a energia deveria ficar mais barata. No entanto, ficará mais cara. Ao menos para o consumidor residencial e pequeno comércio. Para piorar, esse aumento, que não será pequeno, pode ser agravado pela privatização da Eletrobras. O governo fala em “esforço coletivo” para superar a crise, mas, como não exige contrapartida das empresas privadas, o custo deve ficar todo sobre os consumidores cativos. Enquanto isso, as empresas poderão continuar a pagar vultosos dividendos e altos salários e bonificações a seus executivos.
É possível afirmar, assim, que nenhuma das soluções propostas pelo governo atua sobre os problemas estruturais do setor. As duas iniciativas capitaneadas pelo Ministério da Economia em nada contribuirão para promover a ampliação do acesso à energia elétrica, a modicidade tarifária ou a equidade. Pelo contrário, coloca duas bombas no bolso do consumidor sem levar em consideração sua reduzida capacidade de pagamento na atual crise econômica.
A primeira bomba, a privatização da Eletrobras, tem como objetivo entregar a empresa aos grandes bancos e fundos especulativos de investimento, tendo como contrapartida a perda desse importante instrumento de promoção de políticas públicas e de desenvolvimento econômico e social. A segunda bomba no bolso do consumidor tem como propósito a manutenção dos lucros das empresas de energia, onerando o consumidor em benefício de interesses privados.
Essas duas medidas são de fato restritivas da economia, com potencial macroeconômico devastador. Ao aumentar as tarifas, de um lado, o governo está prejudicando ainda mais o já tão caro Custo Brasil. De outro, está retirando dinheiro diretamente do bolso do consumidor, dinheiro que circularia na economia, gerando empregos, saúde financeira das empresas, impostos aos governos municipais, estaduais e federal. Trata-se de mais erros que nos empobrecem o bolso e a alma. O resultado não poderia ser pior, a economia se ajusta, o Brasil ficará pior, mas alguns espertalhões ficarão mais ricos!
Ou seja, as duas medidas citadas apenas agravam os problemas e as injustiças praticadas no setor. Mas o que precisamos é de medidas que atuem na direção contrária da mercantilização da energia elétrica, que tratem a energia elétrica como um direito, como um bem público, e que reconheçam que “Água e Energia não são mercadorias”!